Publicado na edição Jan/Fev 2014 da Revista Nosso Clínico
Encontros combinam as principais diretrizes técnicas com a pressão da sociedade civil organizada
Em 2013 o Brasil foi palco dos maiores eventos de sua história no contexto do combate à Leishmaniose, principal zoonose atualmente no país. A doença ainda é motivo de dúvidas e receios por parte de muitos clínicos do país, que desconhecem medidas preventivas, protocolos e, até mesmo, o respaldo legal que tem no exercício da profissão.
A ARCA Brasil, que se dedica ao tema há mais de 15 anos, levou sua campanha “Prevenção é a Única Solução” ao WorldLeish 5 (13-17 de maio, Porto de Galinhas, PE), maior congresso mundial sobre a doença, e ao X Simpósio Internacional de Leishmaniose (13-15 de dezembro, Belo Horizonte, MG). Nos dois encontros a ONG apresentou medidas eficientes e humanitárias, já utilizadas em diversos países, além de criar um paralelo com medidas semelhantes utilizadas no combate à raiva, hoje controlada pela vacinação em massa e não mais com o extermínio dos cães.
No Worldleish 5, que contou com os mais destacados pesquisadores e profissionais internacionais de saúde, o debate “Tratar ou Matar: Qual Direção Deve a Sociedade (e os Cães) Seguir?” gerou grande interesse e lotou a sala. Foram quatro debatedores: Vera Camargo e Francisco Edilson, pelo lado governamental, e Vitor Ribeiro, do Brasileish e Marco Ciampi, presidente da ARCA, ambos defendendo a revisão imediata das políticas de combate à LVC, aplicadas no país há mais de 50 anos e sem resultados efetivos.
A repercussão positiva gerada levou ao convite para o X Simpósio Internacional de Leishmaniose, realizado pela Anclivepa-MG, em BH, capital escolhida pelo alto índice de casos de LVC. O evento discutiu a doença desde sua etiologia, passando pelo diagnóstico, protocolos de tratamento atuais e prevenção, também contando com personalidades internacionais. Em sua fala, a ARCA reiterou o que foi apresentado no WL5, sendo saudada pelos presentes.
O Dr. Gaetano Oliva, do grupo Leishvet, é um deles. “O conceito de controlar a transmissão da leishmaniose eliminando cães infectados só poderia ser considerado tecnicamente se TODOS os cães (infectados e não infectados) fossem eliminados. Isso porque todos os cães são reservatórios de parasita em potencial. Considerando que medida não é ética ou cientificamente adequada, essa discussão é inútil”, afirmou o professor e especialista do grupo Leishvet.
A sensação de que o momento para mudanças é ‘agora’ permeou todo o ano. Recentemente, a medida cautelar que tentou invalidar a Decisão do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) – que derrubou a portaria 1426/08 que vedava o uso de medicamentos de linha humana para o tratamento de cães com Leishmaniose – foi recusada pelo Ministro Joaquim Barbosa. O processo tramita no judiciário e a sentença definitiva pode demorar anos. Até lá, o veterinário conta com o respaldo da decisão do ministro do STF.
A ampliação do exame rápido para Leishmaniose, o DPP, pelo Ministério da Saúde, em áreas de grave disseminação da doença mostra que mudanças acontecem, embora em passos muito lentos. Como o teste é especifico para a doença, é possível evitar que inúmeros cães morram por conta de erros de diagnósticos em exames menos específicos, como o Elisa. Pelas regras atuais, caso o DPP aponte que o cão é positivo para a doença, o proprietário tem direito a que o animal deve realizar outro exame em laboratório, o RIFI.
O professor Domenico Otranto foi categórico: “Não são vocês (técnicos, especialistas, classe veterinária) que devem pedir para o governo rever e normatizar o programa de controle de Leishmaniose Visceral é o governo que deve querer somar forças com vocês em prol do controle da doença”, afirmou o PhD em Parasitologia da Bari Universitá.
Entrevista com Luigi Gradoni
Um dos maiores especialistas do mundo em LVC fala sobre as políticas nacionais de combate à doença
Luigi Gradoni, do Istituto Superiore di Sanità, Roma/Itália, principal organismo técnico-científico do serviço nacional de saúde desse país, consultor da OMS (Organização Mundial da Saúde) para Leishmaniose e Malária, explica por que o extermínio de cães é ineficaz como método de controle e erradicação da leishmaniose. Autor de inúmeros trabalhos sobre o tema e reconhecida autoridade no assunto, o trabalho de Gradoni é respeitado por técnicos e cientistas.
Confira a seguir entrevista exclusiva do especialista.
ARCA Brasil – Há 50 anos o Brasil gasta recursos preciosos, mata milhares de cães e cada vez mais pessoas morrem devido à leishmaniose. Em sua opinião, qual o maior desafio que o Brasil enfrenta para combater a doença?
Luigi Gradoni – A questão é complexa e alguns pontos ainda são assunto de estudos científicos. É preciso separar em três questões:
1. Gastos públicos: Em minha opinião, é positivo o fato do sistema de saúde pública brasileira investir recursos para um acompanhamento sorológico periódico da população canina em áreas endêmicas para a doença. Isto é importante do ponto de vista epidemiológico e também para avaliar a eficácia das medidas de controle instituídas.
1.2 Matar cães: Esta não é a abordagem no sul da Europa com os cães positivos para Leishmaniose. De acordo com a literatura cientifica, a eutanásia de cães soropositivos tem eficácia limitada no Brasil por duas razões principais: (a) o tempo significativo entre o teste e a remoção dos cães positivo , e (b) o fluxo constante de animais jovens e mais susceptíveis na população canina.
1.3 As pessoas ainda morrem de LV: em minha opinião, esta é uma grave deficiência do sistema público de saúde brasileiro, pelo qual os cães não são responsáveis, definitivamente! No sul da Europa, a cada ano cerca de 800-1000 casos de LV são diagnosticados em humanos. Com exceção de muito poucas mortes de pacientes adultos em situações delicadas de saúde (AIDS, transplantados, estágios finais da cirrose hepática), os pacientes são curados com sucesso em 10-14 dias. Isso porque o sistema primário de cuidados à saúde, especialmente os médicos de família, estão bem informados sobre a doença, A LV é investigada em todos os indivíduos com mais de 10 dias de febre resistentes aos antibióticos. Qualquer caso de LV confirmado é então tratado prontamente com uma droga segura e eficaz (anfotericina B lipossomal).
ARCA Brasil – O Sr. declarou no Congresso WL 5, em maio, que um cão infectado, mas domiciliado e supervisionado por médico veterinário, não representa nenhum perigo à família, mesmo na presença de crianças e idosos. Em nosso país, porém, o Ministério da Saúde afirma o contrário. Qual sua impressão sobre a atual política brasileira centrada na eliminação dos cães?
Luigi Gradoni – Aos milhares de cães sacrificados a cada ano deve-se incluir um elevado número de “cães expostos”, que não são responsáveis de forma alguma pela transmissão de LV. “Cães expostos” foram definidos como aqueles que exibem reações sorológicas positivas (por exposição a picadas de mosquitos flebótomos infectadas), em que, no entanto, a infecção por parasita não pode ser documentada, quer por microscópio ou técnicas moleculares. Provavelmente, estes cães são altamente resistentes à infecção e não representam um reservatório ativo. No que se refere ao perigo imediato de cães infectados aos membros da família, deve se ter em mente que Leishmania não pode ser transmitida por contato direto. Acariciar um cão doente não é um perigo. Contudo, os cães infectados mantidos sem qualquer medida de controle representam um reservatório para a infecção pelo flebótomo , e contribuem para o risco de infecção na área de alcance de voo desse vetor.
ARCA Brasil – Como consultor da OMS, qual sua sugestão para o grande desafio que é alinhar o avanço das pesquisas com políticas públicas modernas e realistas, onde o cão é, cada vez mais, um membro da família?
Luigi Gradoni – Após trabalhar com LV canina por mais de 30 anos, estou plenamente convencido de que animais são cada vez mais membros da família e matar todos os cães soropositivos para Leishmania é uma abordagem antiética e desnecessária. No entanto, para combater a política de eliminação, é necessário um grande esforço e uma abordagem sustentável de longo prazo. Por causa do grande número de cães afetados e dos recursos financeiros públicos limitados (da mesma forma que ocorre no sul da Europa!), a questão fundamental é a EDUCAÇÃO SANITÁRIA dos proprietários dos cães. É cientificamente comprovado que o apego ao animal de estimação e o conhecimento do risco de adquirir a doença estão significativamente associados com a vontade de adquirir, voluntariamente, ferramentas de prevenção à LV canina e, consequentemente, com a diminuição da prevalência da doença. (Am J Trop Med Hyg 87 (5), 2012, pp 822 – 831). Portanto, os proprietários devem estar conscientes da responsabilidade de cuidar de seus animais de estimação, a fim de prevenir e/ou curar a leishmaniose. A medida preventiva inclui a vacinação combinada com o uso de inseticidas tópicos com eficácia comprovada contra flebotomíneos (colar / spot-on formulações). Inseticidas tópicos são ainda mais necessários quando os cães forem diagnosticados como tendo VL, de modo a evitar a propagação de parasitas para os seres humanos e para os cães saudáveis. No que diz respeito ao tratamento, o uso de drogas anti-leishmania para tratar LV em humanos deve ser desencorajado, devido ao risco de desenvolver resistência à droga contra o parasita. É por isso que, como consultor da OMS, eu tenho considerado nas recomendações o uso de allopurinol, isoladamente, para o tratamento de cães infectado, já que não é utilizado em humanos. Tem sido demonstrado que o tratamento com allopurinol pode ser eficaz no controle da doença nos cães e na redução do potencial de infecção (Parasitas e Vetores 2011, 04:52).
Deixe um comentário