Publicado na edição Mar/Abr 2014 da Revista Nosso Clínico
Há alguns anos, muito se tem falado e escrito sobre “evidências científicas” para justificar procedimentos médicos e médicos veterinários, em tratamentos individuais e coletivos, quando associados a controle de doenças em humanos e animais. Quando analisamos a leishmaniose visceral no Brasil confrontamos com outras forças além das exigidas “evidências científicas” para a tomada de atitudes, como imposição de portarias e ameaças a profissionais e cidadãos. Podemos analisar cada uma dessas forças.
Primeiramente nos perguntamos sobre quais evidências científicas se baseiam aqueles que insistem em manter o extermínio de cães, independente das questões que essa medida acarreta socialmente. Sabemos de inúmeras publicações científicas que demonstram a ineficácia da eliminação em massa de cães como forma de controle da leishmaniose visceral humana, notadamente no Brasil (WHO, 2010). Além disso, vem sendo claramente demonstrado os inúmeros erros de diagnóstico cometidos durante os inquéritos caninos e, ainda assim, se mantêm as duas atitudes: diagnósticos imprecisos da infecção canina e extermínio em massa dos cães (Alves & Bevilacqua, 2004; Romero e Boelaert, 2010; Costa, 2001; Costa, 2012; Dantas-Torres et al., 2012). Dois estudos matemáticos demonstram que a eliminação canina não é o caminho para o controle da leishmaniose visceral (Dye, 1996; Massad et al. 2013). Inesperadamente, apesar dessas evidencias científicas, alguns órgãos de classe mantêm seu discurso a favor da eliminação em massa, sem questionamentos ou sugestões que possam abrir outros caminhos, por meio de seus conselhos consultivos ou grupos de estudo.
Então, se não existem evidencias científicas que deem sustentação ao extermínio canino em massa, quais seriam as forças que sustentam o procedimento? Existiriam motivações políticas ou simplesmente questões ligadas a vaidades científicas ou manutenção de cargos em diferentes setores? Isso foi discutido por Costa (2011) e debatido durante o WORLDLEISH 5 (Maio/2013), ocorrido no Brasil, especialmente por ocasião do Fórum Satélite “Kill or treat: which way should we (and dogs) go? Insights from science, state, public health, ethics and society” (Matar ou tratar: por qual caminho devemos (e os cães) ir? Perspectivas da ciência, estado, saúde pública, ética e sociedade ). Naquela ocasião a comunidade científica internacional presenciou a situação brasileira, de um lado enraizada na premissa de controlar a leishmaniose visceral sem adequar suas medidas às evidencias científicas, utilizando-se do poder estatal para implementar e manter condutas voltadas à sumária eliminação canina, e, do outro lado, a comunidade veterinária, composta por médicos veterinários clínicos, que defendem a manutenção da vida de animais infectados por meio de medidas terapêuticas e preventivas.
Outro aspecto relevante, ligado diretamente à eliminação canina, é o tratamento de cães infectados, doentes ou não. Condutas médicas, sustentadas por premissas científicas, nos qualificam a tratar e acompanhar os cães, e gradativamente os gatos, nessas condições. O tratamento da LVC é exercido em todo o mundo, ensinado nas universidades, em livros de medicina veterinária e artigos científicos (Solano-Gallego et al., 2011). No Brasil, a ANCLIVEPA BRASIL e suas regionais, e mais recentemente o BRASILEISH – GRUPO DE ESTUDO EM LEISHMANIOSE ANIMAL vem promovendo encontros contínuos entre médicos veterinários, outros profissionais e a sociedade em geral com o intuito de gerar informação e contribuir para que os programas de saúde envolvendo a leishmaniose visceral sejam pautados nas mais atualizadas premissas científicas. Desejamos conciliar as medidas de controle com o tratamento canino, somando forças e protegendo a saúde e a dignidade humana. Tivemos a recente decisão do Ministro Presidente do STF, Dr. Joaquim Barbosa, em 08.10.2013, que aponta para o médico veterinário o direito de tratar cães com leishmaniose visceral. (Veja a decisão http://migre.me/i2FgD)
O BRASILEISH (http://www.brasileish.com.br/) quer somar forças! Nesse sentido, propôs medidas de controle para a leishmaniose visceral no Brasil pautadas em: 1 – Educação em Saúde; 2 – Controle da população canina; 3 – Diagnóstico e tratamento de cães com leishmaniose visceral; 4 – Combate ao vetor.
Essas forças transformadoras não têm sido adequadamente adotadas, pois não temos testemunhado nas áreas endêmicas programas oficiais de educação continuada que orientem as comunidades sobre as principais medidas de controle da LV, incluindo as de proteção individual (colares inseticidas para cães e gatos, inseticidas tópicos para animais e humanos, telas protetoras, inseticidas ambientais, medidas ambientais, entre outras). É importante salientar que essas medidas devem ser permanentes e interligadas com as associações e lideranças comunitárias, bem como visitas educativas domiciliares e às escolas sobre a posse responsável e aspectos relacionados à prevenção da leishmaniose visceral, em cães e em humanos.
O controle da população canina, timidamente realizado em alguns centros do país, de forma oficial, exige investimento público para chipagem, castração e vacinação. A vacinação canina – necessária para proteção da saúde publica – inclui as vacinas contra raiva, leishmaniose visceral e leptospirose. Além disso, um programa sólido, também deve promover medidas de controle de helmintos (vários deles zoonóticos), pulgas, piolhos e carrapatos. Todas essas medidas devem estar associadas com a criação de hospitais públicos veterinários, com prioridade para o controle populacional por meio da esterilização.
O combate ao vetor deve ser prioritário, uma vez que as evidencias científicas conduzem para que essa seja a medida mais vigorosa para o controle da leishmaniose visceral. Associada a ela, a sistemática e pública vacinação contra a LVC deveria ser assumida pelos órgãos oficiais, a saber, prefeituras, secretarias estaduais e ministérios da saúde e agricultura.
Parece-nos fundamental que os órgãos públicos competentes, associações de classe da medicina veterinária, médicos veterinários clínicos e a sociedade civil em geral deem as mãos, unindo forças contra a leishmaniose visceral, de forma ética e pela vida.
Vitor Márcio Ribeiro
Escola de Veterinária PUC Minas
BRASILEISH – GRUPO DE ESTUDO EM LEISHMANIOSE ANIMAL
A Leishmaniose no Brasil
Os números não mentem: o mal avança a cada ano e a sociedade clama por alternativas – preventivas e humanitárias – de combate à doença
Como sabemos, a leishmaniose visceral (LV) é uma doença grave e pode matar. Países na Europa e em outras regiões endêmicas no mundo concentram suas medidas preventivas no combate ao mosquito transmissor. No Brasil, onde o programa de combate à LV há mais de 50 anos promove o extermínio em massa dos cães infectados – mesmo sem diagnóstico preciso –, o número de casos aumenta a cada ano (vide gráfico).
Milhares de pessoas de todos os estados já se manifestaram pela mudança dessa política cruel e ineficaz, inclusive artistas e celebridades. Especialistas de vários países alertam sobre a ineficiência de matar o cão positivo como medida de controle da doença, ressaltando ser fundamental o combate ao mosquito, assim como se faz com a dengue.
Veja mais informações sobre a LV no Brasil:
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