Publicado na edição Jul/Ago 2014 da Revista Nosso Clínico
O especialista é categórico: “Essa atitude deve ser abandonada o quanto antes, para diminuir a vergonha brasileira”
A ARCA Brasil ouviu um dos nomes mais respeitados neste tema, Carlos H. Nery Costa, Dr. em Saúde Pública pela Harvard University; ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, professor da UFPI e médico do Governo do Estado do Piauí.
ARCA Brasil – O que o Sr., como autoridade mundial na área das doenças infecciosas, pensa do programa de controle da Leishmaniose Visceral (LV) no Brasil?
Dr. Carlos Costa – Quando foi descoberta a epidemia de leishmaniose no Brasil, em Sobral (CE), nos anos 50, o pesquisador Joaquim Eduardo Alencar, baseado no combate à doença na China, recomendou a eliminação de cães, sem se dar conta que, naquele país, a doença não era apenas zoonótica (presença do animal no ciclo). Ou seja, o controle de lá não podia ser atribuído à retirada dos animais, simplesmente porque, nas áreas hiperendêmicas, a doença não dava em cachorro, só em gente. Portanto, nossa política de controle já começou equivocada. A eliminação de cães não só nunca ficou provada cientificamente como instrumento de saúde pública, como estudos posteriores, comparados com a manutenção dos animais, mostraram nenhuma ou fraca evidência de eficácia, ou ainda, resultados contraditórios.
Então nunca ouve, na verdade, apoio científico para o controle da transmissão baseada nessa prática. A única evidência que temos de estudo observacional, é que o DDT (inseticida Diclorodifeniltricloroetano), e não a eliminação de cães, parece ter funcionado no Ceará, nos anos 50. A questão é que o DDT deixou de ser usado em saúde pública no Brasil em 1998, depois foi banido do país, em 2009, sob alegações, inclusive, ambientais. Nós estamos, literalmente, sem nenhum instrumento de controle. O uso de inseticidas de baixo poder residual, os piretróides, não tem se mostrado eficazes, apesar de faltar estudos analisando o efeito dos inseticidas no controle da LV no Brasil. Conclusão, não há evidência e falta muita ciência.
Há uma demanda por inovações tecnológicas, temos que reinventar o controle da doença, procurar entender melhor as dinâmicas de transmissão, além de matar cachorro, uma atitude relativamente violenta e ineficaz. Não se justifica essa verdadeira obsessão de alguns técnicos do Governo, fugindo ao consenso da comunidade científica. Alguns colegas argentinos estão repetindo a mesma coisa, uma má herança científica que o Brasil está deixando. É como querer ganhar o prêmio Nobel ao contrário, ‘aquilo que não deve ser feito’.
Tem muita gente que ‘jura que funciona’, mesmo sem evidência científica, e por isso vão matando os bichos. Não tenho dúvida nenhuma de dizer, categoricamente, que essa atitude deve ser abandonada o quanto antes, para diminuir a vergonha brasileira.
ARCA – Então o Brasil importou um modelo, que não se aplica ao controle de uma doença zoonótica?
Dr. Carlos Costa – Temos que inovar, em vacinas, criar tecnologias de manuseio ambiental. As pessoas fazem, mas sem saber ao certo se tem algum resultado. Há três ou quatro vacinas surgindo, a gente precisa saber realmente qual a eficácia delas e se tem algum efeito sobre a saúde humana. Tem algum resultado sobre a transmissão entre os cachorros, mas o beneficio para o ser humano ainda não está claro.
ARCA – O Brasil é um dos poucos, se não o único, país onde a política governamental é centrada na eliminação dos cães. O que o Sr. pensa dessa diretriz técnica?
Dr. Carlos Costa – É uma medida sem fundamentação cientifica. Há um acordo sanitário internacional que, em um dos itens, basicamente, impede que as nações estabeleçam políticas públicas sem que haja evidência cientifica. É um regulamento, emanado pela OMS, que as nações devem obedecer diante de pandemias, essas doenças transnacionais. Então, de certa forma, o Brasil também está fora da Lei Sanitária Internacional.
ARCA – No último Worldleish 5, maior encontro mundial sobre a Leishmaniose, houve o debate “Kill or Treat – Which Way Should We (and Dogs) Go?”, com a participação da ARCA Brasil. Quais foram as repercussões e qual a sua impressão pessoal?
Dr. Carlos Costa – O evento foi importante para a confirmação de que há valores em jogo além daqueles exclusivamente científicos. Aquela reunião lotada – não tinha onde colocar tanta gente – mostra como o tema é quente e como a sociedade está ansiosa para se pronunciar. A ARCA Brasil, de certa forma, representou setores da sociedade sensíveis aos direitos à vida e à natureza. Isso foi tocante, com certeza mudou o pensamento de muitos cientistas. Por que isso? Porque a tendência do cientista é seguir a estatística cientifica. Se ela aponta para um lado, a gente vai naquela direção, faz estudos de custo e efetividade, revisões sistemáticas, enfim, as diretrizes para as políticas de saúde pública. Mas quando o conhecimento é ambíguo ou pouco eficaz, como é o caso da eliminação de cães com LV, valores outros passam a prevalecer. Se a comunidade científica tiver a capacidade de perceber que existem consequências do que o governo faz, a alegação “se não matar o cachorro, vão morrer as crianças”, algo sem fundamentação cientifica, perde o sentido. Os cientistas perceberam que a sociedade está acompanhando cada uma das nossas palavras, escritas ou faladas.
Veterinário, você tem o poder de mudar essa história
A decisão do STF e a manifestação do Ministro Joaquim Barbosa respaldam o profissional a assumir seu papel no combate a doença
Em decorrência da polêmica que envolve a legalidade do tratamento de animais infectados por leishmaniose no Brasil, dúvidas persistem entre os médicos veterinários de todo o país. Porém, esse cenário de inseguranças deve ter fim. Recentemente, o Ministro Joaquim Barbosa,, do Supremo Tribunal Federal (STF), manteve a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) que considerou ilegal a Portaria 1426/2008 – que vedava o uso de medicamentos de linha humana para o tratamento de cães com leishmaniose – foi indeferido pelo Ministro Joaquim Barbosa. Portanto, enquanto não sai a decisão definitiva do Judiciário – o que deve demorar -, o veterinário conta com o respaldo da decisão do STF.
A situação em determinadas regiões dopais, especialmente no nordeste, é conflitante. Segundo a Dra. Sonia Farias, de Fortaleza – Ceará, a população cada vez mais busca tratar os cães, embora alguns profissionais da região ainda demonstrem receio nessa conduta. Outro veterinário de Fortaleza, que preferiu não se identificar, diz que o CRMV-CE ameaça abrir processos de ética médica e caçar diplomas de quem trata os animais. “Assim fica difícil”, desabafa o profissional, que ainda alerta ara um perigo adiciona: “As pessoas estão tratando seus cães por conta própria, baseados em dicas de amigos e vizinhos. Pela internet é possível encontrar o nome de medicamentos, quantidades, etc. O veterinário fica de fora, mesmo sendo fundamental a orientação desse profissional para o tratamento”.
Como deve se posicionar o médico nesse cenário? O Dr. Wagner Leão, advogado autor da Ação Civil Pública pela ONG Abrigo dos Bichos (Campo Grande, MS), orienta: “Com a decisão do STF, a mais alta corte do país, o veterinário fica, sim, livre para realizar o tratamento”. E sobre a atual política governamental, complementa: “Analisando o contexto jurídico brasileiro, as convenções internacionais de proteção ambiental e animal, e o direito do livre exercício profissional e de pesquisa do médico veterinário, concluímos que a Portaria e Decreto que determina a eutanásia de cães doentes são ilegais e abusivos”.
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