Para especialista, “é preciso ouvir a comunidade científica em alto nível, para tomar decisões embasadas”.
ARCA Brasil – Sabemos de alguns sinais de flexibilização da política atual. Quais as chances de uma reforma por parte do governo?
Dr. Carlos Costa – Minha visão não é otimista. Não sei se é por razões políticas, pelas pressões de grupos interessados em manter o programa de eliminação de cães… Não sei exatamente o que há por trás. Seguramente, não é ciência. Houve um evento no início deste ano, que deve ser louvado, no sentido de escutar a comunidade científica. Minha participação consistiu em tentar examinar com eles como seria o ‘dia seguinte’ ao se parar de eliminar os cachorros, como seria esse processo, tentando antecipar um cenário favorável. Há um certo mal-estar entre os cientistas com a manutenção dessa política, mas parece que esses funcionários públicos são relativamente insensíveis aos apelos científicos e à comunidade de proteção aos animais.
ARCA – Seriam posições pessoais e não baseadas em ciência?
Dr. Costa – Não sei se é pessoal. Havia uma funcionária do Ministério da Saúde, que hoje está na OPAS, que defendeu enfaticamente esses interesses. Essa senhora fez o embasamento jurídico no sentido de perpetuar a eliminação de cães. No caso dela, eu diria que é pessoal. Mas não sei se os técnicos atuais continuam na mesma obsessão, ou, na verdade, se estão sob pressões acima de suas forças. E, você sabe, há políticos sempre ocultos, a gente nunca sabe exatamente de onde vêm as pressões.
ARCA – O ambiente político estaria contaminado?
Dr. Costa – Sim é possível que esteja influenciando. É por isso que eu acredito que a saída seja judicial.
ARCA – E, certamente, informar e organizar a sociedade que ama esses animais, principal papel da campanha ‘Prevenir É a Única Solução – O Cão Não é o Vilão’. E quanto à educação ambiental, impedir o acúmulo de matéria orgânica…
Dr. Costa – Não há nenhuma evidência científica de que tirar a matéria orgânica tem alguma eficácia no controle da doença. Na verdade, não temos nenhuma medida de saúde pública eficaz para o controle da Leishmaniose Visceral (LV). Zero. A não ser o diagnóstico precoce e o tratamento, fora isso, nada está assegurado para o controle da doença. Talvez o DDT pudesse ter feito isso, mas hoje não existe nada cientificamente demonstrado. O resto é conversa pra enganar tolo.
ARCA – Então a mobilização nacional para controlar a doença deveria ser mais séria?
Dr. Costa – Muito mais séria. A outra doença, muito parecida com o Calazar, é a dengue. O número de casos aumenta e nós não sabemos o que fazer. A gente segue aquela regrinha, mas claramente sabemos que não serve de nada, a doença continua epidêmica e nada se resolve. Com a dengue, pelo menos sabemos que o foco está na água parada, e quando você tira, aquilo melhora. Para o Calazar, a situação é pior. A “vantagem” do Calazar é que tem tratamento de origem (*). Na dengue, o tratamento é etiológico (**). Em compensação, o Calazar mata mais. Temos que financiar pesquisa, colocar cientistas jovens, abrir a cabeça, deixarmos de ser repetidores. Inovarmos, porque o que existe hoje realmente não funciona. Criar vacinas, novos métodos de controle ambiental, melhoria das condições urbanas.
ARCA – Falta incentivo à Ciência?
Dr. Costa – À Ciência e às instituições de ciência, que são muito frágeis no Brasil. É preciso avançar não só o conhecimento em si, mas as instituições que dão origem ao conhecimento.
ARCA – Retomando sobre o encontro de especialistas no início do ano, parece ter sido um momento importante.
Dr. Costa – Foi a própria Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, que encomendou essa audiência a pesquisadores convidados. Fui sendo excluído ao longo dos anos, por minhas opiniões contrárias, e eles não queriam ouvir o contraditório. Por pressões superiores, desta vez participei. Mostraram-se bem mais flexíveis, o que achei muito louvável. Ouvir a comunidade científica, em alto nível, para tomar decisões embasadas, sem dúvidas é uma atitude importante.
ARCA – Pode ser o sinal de novos tempos, com a saída dos núcleos resistentes?
Dr. Costa – De certa forma, eles continuam lá. Mas as altas lideranças são mais flexíveis, já sabem que o programa não funciona. O Dr. Jarbas Barbosa (Secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde) sabe perfeitamente que os dois maiores problemas que ele tem hoje no Brasil são Dengue e Calazar, e que nenhuma das duas doenças obedece às medidas de controle. Claramente isso sofre pressões da presidência, com copa do mundo, grandes eventos etc. Aí, naturalmente, o Dr. Jarbas, que é inteligente e muito sensato, de certa forma, sacudiu os degraus abaixo da administração, para que saia desse marasmo de bater na mesma tecla durante décadas sem sair do lugar. Pelo contrário, a doença vem se expandindo, a cada ano está pior. Obviamente, é necessária uma intervenção em outra escala, em outro nível, com outra qualidade.
ARCA – Isso seria honrar a tradição brasileira no setor.
Dr. Costa – O Brasil tem uma tradição muito forte em pesquisa e no controle de doenças – como a de Chagas . É preciso resgatar e dar à comunidade científica o poder de iluminar os caminhos da saúde pública no país.
*O tratamento do Calazar/Leishmaniose utiliza drogas que matam o parasita ou controlam sua replicação, controlando as principais manifestações clínicas do paciente.
**Visa o agente causador da doença.
Carlos H. Nery Costa, Dr. em Saúde Pública pela Harvard University; ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, prof. da UFPI e médico do Governo do Estado do Piauí.
A IMPORTÂNCIA DA VACINAÇÃO NO CONTROLE DA LVC
Quatro dos maiores especialistas do Brasil dão sua opinião sobre o tema
Vitor Ribeiro – Escola de Veterinária PUC Minas; BRASILEISH.
“O melhor exemplo de que investir em programas de vacinação é mais vantajoso para o controle de doenças do que os programas baseados em abate canino e felino é o controle da raiva no mundo. A “carrocinha” era temida pela população. Já as campanhas de vacinação obtiveram sucesso e adesão popular. Acredito que, com a LVC, passaremos por experiência semelhante: o Estado se tornará aliado do proprietário do cão, e não seu inimigo. É lamentável que se priorize o abate canino em vez de buscar soluções éticas. As vacinas já demonstraram, através de trabalhos controlados, sua eficácia e potencial como aliadas no programa de controle da leishmaniose.”
Filipe Dantas – Fundação Oswaldo Cruz, Recife, PE; BRASILEISH.
“Ferramentas como vacinas e repelentes de longa duração têm revolucionado o controle da LVC no mundo e precisam ser incluídas em qualquer programa de controle. O clínico veterinário está na linha de frente nessa guerra contra a LVC. É responsabilidade desse profissional recomendar tais ferramentas, esclarecendo aos proprietários os prós e contras de cada uma delas, contribuindo assim para o controle dessa doença que ainda acomete tantos animais em nosso país”.
Fabio Nogueira – Fundação Educacional de Andradina, MG; BRASILEISH.
“A vacinação é uma excelente ferramenta para o controle no reservatório canino assim como o uso de repelente e inseticidas. A vacinação dos animais em áreas endêmicas mostrou-se, pelos diversos trabalhos já publicados desde 2004, eficaz e segura, sem interferir no Programa de Controle da Doença proposto pelo Ministério da Saúde. Temos no mercado Nacional duas vacinas, sendo uma (Leish-Tec®) aprovada pelos Ministérios da Saúde e da Agricultura”.
Paulo Tabanez – Prontovet, DF; BRASILEISH.
“A vacinação é eficaz, segura e importante para o controle da leishmaniose visceral. Deve ser reconhecida como essencial no Brasil, em virtude da epidemiologia e forma de controle dessa enfermidade em nosso país. A vacinação em massa dos cães gerará um efeito chamado ‘imunidade de rebanho’, conduzindo à proteção da população, se realizada em pelo menos 80% dos indivíduos. O médico veterinário não deve negligenciar a possibilidade de usar mais um instrumento de controle. Animais vacinados são menos susceptíveis à doença e, consequentemente, o número de mortes cai drasticamente”.
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