A origem da ARCA Brasil está ligada a uma história idílica. Por sua beleza e delicadeza pode ser até difícil acreditar que tenha tido nosso lindo, mas maltratado país como cenário e que o tenha transformado em um exemplo a ser seguido pelos demais.
Tudo começou com Flipper, como ficou conhecido carinhosamente pelo Brasil, o golfinho tirado por encomenda em 1984 do mar de Laguna, Santa Catarina. Separado de sua família, ele foi apartado da liberdade para viver em um tanque de 12 metros de largura, em um parque de diversões na cidade de Santos, fazendo a diversão dos visitantes em troca de peixes mortos.
A situação de Flipper mudou quando o químico Márcio Augelli do Tucuxi, Grupo de Proteção ao Boto, iniciou uma ação judicial contra sua exploração. Em 1991 a Justiça embargou os shows com base na primeira lei de proteção animal do país, nº 24.645 de 1934.
Para cuidar dos aspectos legais e administrativos da operação, foi criada, em janeiro de 1993, à época com o auxílio da WSPA – World Society for the Protection of Animals, a Associação dos Amigos do Golfinho Flipper, entidade que deu origem à ARCA Brasil (posteriormente, a ARCA ganhou a atual denominação, sem qualquer vínculo com outra entidade).
A experiência com Flipper mostrou na prática o que homens e mulheres com alguma sensibilidade já sabem: lugar do animal silvestre é em seu habitat. “A reabilitação e reintrodução no habitat de um animal silvestre é um processo delicado, envolve muitos recursos. Temos que fazer tudo para não tirá-lo de seu ambiente original”, afirma Marco Ciampi, presidente da ARCA.
O início dos trabalhos
O projeto tinha à frente o ex-treinador de golfinhos, o norte-americano Ric O’Barry, que na década de 1970 mudou sua trajetória e passou a readaptar cetáceos cativos à liberdade. Marco Ciampi cuidava das questões legais e práticas para a transferência, enquanto Ric se tornou o companheiro de muitas horas de Flipper em seu tanque, na cidade de Santos.
A primeira providência da dupla ao chegar ao Oceanário de Santos foi tentar devolver ao animal o mínimo de bem-estar e saúde. “O tanque estava com o filtro de água quebrado. No fundo dele, havia uma crosta de fezes acumuladas, roupas, latas e outros dejetos. Para disfarçar essa sujeira, era usada uma quantidade enorme de cloro. Por conta desse excesso, Flipper praticamente não abria os olhos. Além disso, sua pele estava com queimaduras de sol, por ficar longas horas na superfície do tanque, à espera de companhia. “A falta de cobertura fazia com que a água chegasse a temperaturas de 30 graus centígrados durante o dia e esfriasse bastante à noite”, relembra O’Barry em seu relato sobre o episódio.
Foi preciso ajuda do corpo de bombeiros para esvaziar o tanque e enchê-lo de água do mar limpa. A partir daí, teve início o processo de readaptação de Flipper. Era preciso habituá-lo a comer tainha, da região de Laguna cujos cardumes atraem os “botos”, como são chamados por lá os golfinhos. Enquanto isso, outras pessoas haviam se juntado à causa. Voluntários em Santa Catarina, inclusive mergulhadores, construíam uma área de isolamento no mar para manter o animal ainda por alguns dias preso até acostumar-se completamente ao seu habitat. Finalmente, em 18 de janeiro de 1993, Flipper embarcou em um helicóptero e venceu uma viagem de cinco horas até sua cidade.
A operação de embarque não foi simples e envolveu cerca de 30 pessoas entre biólogos, veterinários, treinadores, ambientalistas, bombeiros, entre outros. Eram necessários cuidados, como evitar possível desidratação. Uma grossa camada de espuma, de 1 metro de largura, evitava que o mamífero de 250 kilos esmagasse seus órgãos internos, durante a viagem de mais de 2 horas, por helicóptero, de Santos até Laguna, na maior operação desse tipo já realizada no país.
Em todo o Brasil, a população acompanhava pela mídia, que abriu grandes espaços para cobrir os esforços pela reconquista da liberdade de Flipper. O episódio foi assunto no mundo inteiro, desde Estados Unidos, Europa até Ásia. A revista alemã Stern e a rede de TV National Geographic cobriram grande parte do projeto, e a Fox Television enviou uma equipe a Santa Catarina para registrar a operação.
No lar provisório
Um animal criado em cativeiro esquece como viver seguindo seus instintos. No caso de Flipper, não era apenas a capacidade de pescar peixes vivos que ele tinha de reaprender. Exames feitos ainda no tanque mostraram que ele não usava mais seu sonar, sistema de comunicação que permite se autolocalizar e encontrar alimento. No tanque, o som ia de encontro às paredes e voltava refletido para o animal com grande intensidade devido à curta distância percorrida. Para evitar o incômodo, o golfinho parou de utilizá-lo. Biólogos e veterinários acreditavam que uma vez interrompido o sistema, o animal não conseguiria recuperá-lo. Mas estavam enganados.
Surpreendentemente, bastou Flipper voltar a seu habitat para retornar a usar o sistema de comunicação – fato confirmado por Mario Rollo, biólogo, doutor em zoologia e especialista em mamíferos aquáticos da Unesp. Até a pouca visibilidade – característica da água do mar na região – foi um dos fatores que auxiliaram na retomada de uso do sonar. O incentivo à pesca de peixes para se alimentar foi outro elemento decisivo para isso. Depois que ele capturou seu primeiro peixe vivo, se recusou a comer outro tipo de alimento. A busca por alimento no grande cercado beneficiou o exercício dos músculos do corpo, desacostumados a nadar no espaço restrito do tanque.
Durante esse período, Flipper recebeu a visita de muitos golfinhos. Os mais freqüentes eram dois machos e Riscadeira, que os pescadores diziam ser mãe de Flipper, acompanhada por mais dois filhotes. Os animais se aproximavam da cerca de proteção, empurrando-a, e Flipper retribuía o contato da mesma forma.
Enfim, a liberdade
Flipper já pegava seus próprios peixes vivos, tinha tido contato com outros golfinhos, usava seu sonar e se comportava novamente como um animal selvagem. Dia 2 de março de 1993 foi a data escolhida para deixá-lo ir além daquele cercado, construído para sua proteção.
Naquele dia, a multidão voltou à praia. Autoridades políticas locais, policiais, a imprensa e muitas crianças também compareceram. Todos torciam para que ele pudesse viver como deveria: em liberdade. Uma faixa expressava o desejo coletivo: “adeus Flipper, tenha uma vida feliz”.
No mar, outros golfinhos se aproximavam como se pressentissem a importância de dar uma boa acolhida àquele que retornava para casa. Às 9h30 da manhã, a rede que o separava da imensidão do oceano Atlântico foi cortada. O’Barry nadou para fora do cerco e Flipper o acompanhou. Foi sentindo o “terreno”, como que tímido, distanciando e voltando ao ponto inicial. Aos poucos o raio de seu círculo se ampliou. Às 10h30, Flipper nadava em total liberdade e, após uma série de saltos, como a comemorar sua nova condição, sumiu da vista de todos.
Os desafios do início
A equipe do projeto, especialistas e até os pescadores acreditavam que Flipper se manteria nas imediações de Laguna, fosse sozinho ou junto a outros de sua espécie. Nos primeiros 15 dias no mar, ele foi visto em outras praias, afastando-se de 20 a 45 km de onde havia sido solto. No dia 20 de março, foi avistado a 85 km de Laguna , aparentando cansaço e com arranhões por todo o corpo. Posteriormente, comprovou-se que os ferimentos eram a prova de que o animal estava em seu processo de ambientação, em disputas com outros machos, provavelmente por fêmeas.
Flipper ficou durante meses “passeando” pelas praias de Santa Catarina e do Paraná. Sua preferência era por águas calmas, viscosas, verdadeiros paraísos ecológicos. Isso até resolver dar uma esticadinha a São Paulo, arrastando consigo novamente boa parte da imprensa nacional e internacional…
Flipper não foi avistado de julho até o final de 1993. Logo no início do novo ano, ele apareceu e brincou com banhistas na Baía da Babitonga, em Santa Catarina, enquanto dois golfinhos o aguardavam em alto-mar. Durante todo o mês ele foi visto na região, sempre acompanhado por outros da espécie. Essas aparições se dão até maio de 1994.
É aí que, em três dias, ele surpreende até mesmo os cientistas mais experientes e, nadando cerca de 200 km, parte de Cananéia e aparece nas águas de Praia Grande, seguindo dali até São Vicente e Santos, todas elas cidades do litoral paulista. Nesse curto período de tempo em Santos, Flipper causou uma revolução. A ganância humana, sedenta pelos lucros que o golfinho trouxe ao comércio local, por meio do aumento do fluxo de turistas na região, sonhou um cercado no mar para prendê-lo novamente. Revistas, jornais, canais de televisão e políticos locais começaram uma campanha, dizendo que Flipper voltava para “casa”.
O especialista Mario Rollo foi uma das vozes que contribuiu para lançar por terra essa tentativa perversa de atribuir a Flipper saudades do tanque sujo onde vivia. “O animal não reconheceu a região. Não se podem atribuir a golfinhos capacidades extra-sensoriais, sobrenaturais ou de apelo puramente emocional”, reafirma 15 anos depois. “Se, por um lado, esses animais deslocam-se bastante em busca de alimento ou lugares mais favoráveis para a geração e desenvolvimento de suas crias, por outro ainda não temos subsídios para dizer que esses foram os motivadores do Flipper, em particular”.
Em meio a esse clima, autoridades políticas, científicas, ambientais e da proteção animal se reuniram para debater sobre a situação de Flipper. A conclusão foi de que ele deveria ser deixado em paz para prosseguir sua nova vida. “O grande barato dessa história foi ver a recuperação do animal. Quando o vi, um ano depois, podíamos notar como ele havia desenvolvido novamente os músculos, tanto que nadou toda essa distância até São Paulo, em três dias”, lembra Marco.
Em junho de 1994, ainda é visto no Guarujá. Três dias depois, deu meia volta e retornou para o litoral paranaense. O último avistamento oficial de Flipper foi no final de 1995, na Baía Antonina, Paranaguá, PR, pela bióloga Regina Zanelatto, da Universidade Federal do Paraná. Desde então não houve provas consistentes de outras aparições.
Flipper está vivo?
O especialista Mario Rollo Junior afirma que é possível que o animal continue vivo. “Tendo em vista que ele foi solto e passou a se movimentar e a se alimentar irrestritamente, sua expectativa de vida pode ter se estendido”, afirma, já que um golfinho vive cerca de 30 anos.
A falta de pesquisas na época foi, segundo Rollo, a causa de não se saber atualmente a localização do animal. “O caso não foi investigado com o devido aprofundamento e o aporte de recursos necessários”, diz.
Hoje o Brasil pode se orgulhar de não ter nenhum golfinho em cativeiro. Países como Argentina, Estados Unidos e Japão não têm o mesmo privilégio.
A história de Flipper ensina a maneira correta de amar os animais silvestres. “Que os homens se desprendam do sentimento de posse e os deixem livres”, afirma Marco.
Acompanhe nas próximas edições do Notícias da ARCA os outros capítulos do especial ARCA Brasil 25 anos, com a história da entidade, marcada pelo pioneirismo de suas ações.
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